04/03/2008 

Meus amigos,

Comemorar marco de quarenta anos de qualquer coisa além de raridade é motivo de grande felicidade. Em nosso caso, não só por estarmos juntos, revendo uma etapa inesquecível de nossa juventude, onde os sonhos eram imensos, a expectativa do desconhecido nos embalava, mas também por estarmos reafirmando a certeza da bela opção que fizemos ao escolher a Marinha como casa de parcela de nossa formação.

Como a vida deu muitas voltas depois dessa etapa básica, nos levando a lugares e afazeres diferentes, temos o nosso presente diferenciado, mas nosso passado é único, nos ligará para sempre e é gostoso de lembrar.

Muitos não puderam estar aqui como gostariam, em decorrência de seus compromissos atuais ou por problemas comuns ao ser humano que enfrenta a vida agitada de hoje em dia, mas estamos aqui os que podem, mostrando uma força cultural de passado, que nos alimenta a alma.

Outros, dentre aqueles que tiveram o mesmo início conosco, e deixaram nosso convívio físico, por terem cumprido suas missões mais cedo, mas que podem se deslocar mais facilmente hoje em dia, faremos uma chamada individual, para que se unam ao nosso grupo, presentes que estão sempre em nossa memória.

Alfim Ferreira Barra,

Ronaldo Rômulo da Rocha Lages,

Marcos Fernando Santos e Oliveira,

Marcos Pessoa Fontes Gurgel do Amaral,

Luiz Carlos de Oliveira,

Reginaldo Fernandes,

Marcelo Tupinambá Fernandes de Sá,

Herz Aquino de Queiroz,

Márcio Hartz,

Edgar Eifler de Vasconcelos,

Agora, com todos juntos, vamos começar essa singela apresentação com um rápido retrospecto da odisséia que vivemos.

Depois de enfrentar as provas de acesso ao Colégio Naval, nossa maior preocupação e ansiedade era ver o resultado, uma busca constante de jornais para ver a relação dos aprovados.

Tudo era emoção. Nos encontrávamos quase todos os dias e, trocando confidências, vivíamos os primeiros passos da carreira.

Será que o fulano passou no psicotécnico? A árvore dele foi uma árvore de Natal.

Recebida a notícia da aprovação, acompanhada de uma infinidade de papeis, com as rotinas do Colégio, a alegria contagiante da preparação do enxoval, tudo era felicidade.

Imaginem vocês as dúvidas que existiam naquela documentação recebida com as instruções e rotina do nosso futuro colégio. Não dava para entender porque tudo era feito duas vezes, por exemplo, ao meio-dia era o rancho, e às 13;30hs, volta ao rancho. Puxa vida, comer duas vezes. Que beleza.

Finalmente, chegamos ao ponto do primeiro embarque. Amanhecia no cais da Bandeira. O lusco-fusco da madrugada cedia a vez a um dia claro e brilhante como só podem ser os dias de março no Rio de Janeiro. O bodame estava boquiaberto com o sul maravilha.

Esperávamos a chegada do misterioso Aviso (que diabos era um Aviso?) no meio de um grupo cada vez mais numeroso de jovens meio que assustados e que se olhavam querendo saber quem seriam nossos futuros companheiros de Colégio Naval.

Na mala um enxoval cheio de dúvidas (que seria uma gheta?) comprado a partir das informações de um livrinho contendo as instruções para nossa ida para Angra.

Imberbes, cabeludos, magros, gordos, negros, nisseis, branquelos, candango, nordestinos e sulistas, todos aguardavam a hora da viagem.

No Aviso Rio das Contas, o CT Ennes, um senhor idoso aos nossos olhos da época, que levava seu filho de colo e esposa para Angra, os amigos do cursinho preparatório, velhos companheiros dos Colégios Militares de todo o Brasil, todos disfarçando o nervosismo com piadas sem graça. E, como ponto principal, os Veteranos. Terrível raça de seres poderosos que a lenda dizia que ficariam com nossas vidas nas mãos. Estavam lá o Valim e o Mercio. Como será que eles conseguiam enxergar com aquele chapéu em cima dos olhos?

Embarcar. Fomos para bordo, em uma operação arriscada para aquele bando de novatos carregados de malas e sob o olhar já saudoso das mães e pais presentes.

Alguns, imediatamente após o embarque, já se coloriam de verde, prenúncio da viagem de navio. O porão exalava um odor de óleo que ninguém suportava, mas ficaria pior.

Já no través da Laje, o Aviso começou a caturrar e os estômagos de muitos iniciaram uma série de movimentos espúrios que culminaram com mareadas monumentais ao cruzar a boca da barra.

E a restinga da Marambaia que não terminava nunca. Malas eram seres vivos que se mexiam no jogo do Aviso. Aonde diabos foram nos meter?

A cantina do navio estava aberta, e para os muitos, que estavam sem café da manhã, era como um supermercado. Em uma janela minúscula, um senhor uniformizado, cheio de ginga de malandro, vendia barras de chocolate que poucos minutos depois de ingeridos caíam ao mar para alimentar os súditos de Netuno.

Caras de meninos, corpos de meninos, cabeça de meninos e determinação de homens.

Navegando placidamente pelo Atlântico Sul, muitos ficamos apreciando a bela cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, enquanto alguns continuavam alimentando peixes. Ao entrarmos na Baía da Ilha Grande ocorreu o primeiro milagre. Ressucitação.

Com a chegada na enseada Batista das Neves, os porões ficaram vazios e as bordas lotadas de olhares curiosos.

Lindo lugar, montanha ao fundo, águas claras, calmas, e o cais se aproximando.

Desembarcar.

Pegar malas, passar para o glorioso chão firme. Firme? Este cais está se mexendo mais que o Aviso. Vários continuaram mareados.

Mas, como bons adolescentes, estávamos com fome. Muita fome.

Distribuídos por armários, fomos saudados por uma fila onde iríamos comer uma bela macarronada.

Depois, sem tempo para descansar, recebemos uma andaina de uniformes mescla. Como foi fácil notar, os tamanhos grande, muito grande e enorme eram os únicos e serviram para todos.

ATENÇÃO, TRINTA MINUTOS PARA FAZER BAINHA E DESCEREM VESTIDOS.

Segundo milagre. Deu tempo.

Ridículos. Roupas largas, um chapéu que era o dobro da cabeça, bainhas se desfazendo, e tome esporro, gritaria, formatura. Meu Deus, joguei pedra na cruz.

Terminou o três de março. Dormindo profundamente.

Uma nova e bela vida começava.

Não adianta ficar lembrando cada detalhe com pormenores. São inúmeros e ficaríamos aqui duas semanas papeando. Quem quiser mais detalhes leia o Largando a espia que está sensacional. O primeiro dia é o que vale.

Depois vieram outras coisas boas. A chegada dos veteranos, os trotes, as brincadeiras, o estudo obrigatório, aulas com figuras inesquecíveis. Fulano, LEIA. A linha de terra do Velpa. Lessa, não mexa na formatura. Parte de ocorrência. Audiência. Bailéu. Impedimento. Dormir depois da alvorada. Calistênica. Esporte. Campeonato de novos. Salão de Recreio. E o tal do jaquetão que não chegava nunca.

As conversas eram excelentes. Vocês sabem que o soldo vai aumentar? Vem aí o soldão. Terceiro milagre, todos acreditavam e alguns acreditam até hoje. Mas ninguém ficou na Marinha pelo dinheiro, ficamos porque a casa é fantástica, as amizades são eternas, o trabalho é único e apaixonante, a vida é cheia de emoções e sempre estamos rodeados de verdades, fidelidade, compromisso, gentilezas, honestidade e boa fé. São valores difíceis de achar, principalmente juntos em um só ambiente.

Mas a vida no Colégio continuava.

Licença de cheviot. Estávamos ansiosos para ir para casa fardados e mostrar a farda para a família. E o tal do jaquetão que vai chegar no Aviso?

Mínimo de natação, reunião em Niterói. Ônibus para voltar para casa. Sair pelo aéreo. Matar a matutina trancado no armário. Andar de canadense. Tolda? Dar serviço? Ronda? E a banda, com seu Mestre empolgado que, para pegar os instrumentos no chão e se preparar para tocar, dava a ordem: cada qual com seu cada qual. E o EP que dava aulas teóricas de futebol? Falando das quadras, dizia que só existiam dois tipos, pequena e grande. E, apontando uma, exclamava empolgado: esta, por exemplo, é a média. Rotunda?

Nos primeiros quinze dias, tínhamos outra unanimidade. QUERO SAIR DAQUI. O JAQUETÃO QUE VÁ PARA A PUTA QUE O PARIU.

Festival de provas, cola passada pelo fonoclama. Vocês lembram? Nas sextas-feiras, o anúncio vinha: os alunos proprietários dos carros chapas tal e tal – só tinha placa com números até cinco. O Boi. Só para coxados.

As figuras inesquecíveis. Aranda, aquele velho senhor, nosso Diretor, parente de Deus, Gouveia Santelmo, Titio Edésio, Wangler, Ribamar, Célio, Seabra, Loureiro,Belém, Cláudio, Magliano, Nunes de Souza, Expedito, Ulisses bibico, Robson, Moises, e tantos outros que fizeram nossa formação.

Obrigado a eles, que, de uma forma ou de outra, colaboraram para nosso crescimento.

A fila no telefone. O restaurante do Jacques, a cachaça do Vovô, os bailes no Vera Cruz, com seu conjunto de único acorde para qualquer música.

As noites de conversa no regresso de licença, quando apareciam estórias mirabolantes de sexo animal e em quantidade, isso porque tínhamos apenas o sábado e o domingo de manhã, se houvesse mais tempo não haveria donzela sem conhecer aluno do CN.

Viagem de instrução.

O tempo foi passando, chegamos ao segundo ano. Quase todos.

Novos amigos se incorporaram aos que fizeram a base do primeiro ano de 68. Bons amigos, cuja integração natural faz com que exista dificuldade em definir quem é de 68, 67, 66 etc. Alguns estavam tão ansiosos para participar de nosso grupo que já nos esperaram no próprio primeiro ano. Saber, hoje, quem entrou quando, é de assunto que gera até divertidas conversas nas reuniões em volta de um chopp. Essa é uma das belezas da nossa carreira. Não importa o ano, não importa a origem, não importa o caminho tomado. SOMOS A NOSSA TURMA E NOS ORGULHAMOS DISSO. E ESTAMOS TODOS COMEMORANDO.

Mas o tempo passou.

Foi muito rápido e muito marcante. Passagem da cana do leme.

Caminhada para o Rio, orgulhosamente vestindo camuflado, patescaria na Gipóia, a NAE, brigas em Angra, Bailéu, revertério, segunda época, provas finais, desfile em São Paulo, Brasília, preparar para a festa junina, festival de salsichão, e por aí afora.

Foi um lindo período, deixamos a mocidade de lado e nos transformamos em homens e militares.

Foi um início de carreira promissor.

Lá se vão 40 anos e parece que foi ontem. A jornada foi difícil, mas estamos aqui para comemorar 40 anos.

Nossa turma se formou em espírito, fizemos nossos grupos e fomos além.

A Marinha também tem o que comemorar. O País também tem o que comemorar.

Desse grupo saíram vários para a vida civil e estão lutando em vários setores privados.

Os que ficaram se tornaram oficiais e contribuíram para o engrandecimento da Força.

Na Marinha, chegamos ao posto de Almirante e já vemos no horizonte o farol de nosso porto de atracação. Nosso barco navegou em mares bravios, enfrentamos as tempestades da vida, mas nossa derrota está cumprida e partimos para a última pernada oficial.

Deixamos de comemorar noivado e casamento para vibrar com o nascimento de netos, largamos a fila do telefone na tolda para usar a internet, deixamos os conveses de nossos serviços para pilotar carrinho de supermercado, e, finalmente, já não achamos que CT é tão velho assim.

Fazemos parte da história da Marinha, fomos a turma de 68 e somos Taylorianos, fizemos nosso papel, no cumprimento das palavras proféticas de nosso Diretor Paulo Freire.

“Nunca é demais ressaltar que nossa carreira é um verdadeiro sacerdócio, pleno de responsabilidades e de árduas lutas; há, porém, como em tudo na vida compensações……..A vocês, jovens que deixastes o aconchego dos lares, para dedicardes ao serviço da classe, à severidade e desconfortos da vida naval, mais uma vez meus cumprimentos porque com justiça, bordado no estandarte deste Colégio, está o dístico “Esperança da Armada” , que bem retrata a importância dos alunos deste estabelecimento que honra as tradições da nossa Marinha.

A todos desejo uma feliz singradura, com ventos bonançosos e mares tranqüilos: Boa sorte”.

Hoje, vemos a esperança da armada renovada, com outros jovens como nós iniciando a carreira que amamos. Demos nossa contribuição e deixamos uma Marinha forte e consciente de seus deveres constitucionais, pronta para ser engrandecida e seguir adiante nas mãos dos que estão nos sucedendo.

A estes novos marinheiros, nossas boas vindas e a afirmação de que jamais se arrependerão, muito pelo contrário, serão felizes e vão realizar muito pela Instituição.

A vocês, meus amigos de sempre, ficamos por aqui, salvadas as lembranças, resguardadas as esperanças, mantido o bom humor e renovada a vida.

Devemos a muitos nosso sucesso, e, para mostrar nossa gratidão, convido a todos para homenagearmos nossos familiares, professores, instrutores e a nós mesmos com uma solene salva de palmas.

Muito Obrigado

Autor: CA José Eduardo